domingo, 22 de maio de 2016

Leituras indispensáveis... reflexões difíceis...

Chian Tsun Hsiung
Quem são esses caras que eu chamo de dirigentes? A maioria deles integra o estamento tecnocrático da economia, são gestores do grande capital, intelectuais orgânicos, se for esse o conceito preferido para definir de algum modo os funcionários da burguesia que continuam sendo chamados para orientar as mudanças. Há empresários entre eles, mas a cultura da gestão eficaz da economia coloca todos no mesmo patamar de distinção. 

São homens (raras mulheres) de gabinete cuja ideologia é a da funcionalidade empresarial e financeira, desprovidos de critérios éticos na orientação daquilo que implementam. Não são anti-éticos; são a-éticos (a exemplo de uma definição histórica dada pelo ex-ministro da ditadura, Delfim Netto, integrante hoje dessa tecnocracia que Temer abraça). Portanto, a legitimidade do que fazem é auto-atribuída. Como se julgam infalíveis e dotados da antevisão do êxito de seu receituário, não estão preocupados com o escrutínio das urnas, embora alguns tenham se aventurado a cargos parlamentares sem que fizessem disso projeto de vida. 

Esse conceito peculiar de representação tem lógica, já que a natureza a-ética de suas propostas é classicamente impopular. Fernando Henrique, um exemplo clássico de um intelectual a serviço dos ocultos interesses privados que estão por detrás dessa cultura da eficiência, foi quem melhor desvendou o segredo. Ao explicar a rapidez com que Temer teria que promover a desmontagem do Estado Desenvolvimentista, o ex-presidente lavrou uma pérola sobre a estratégia dos golpistas:

A proposta não foi feita para enfrentar o voto popular. Com um programa desses não se vai para uma eleição. (...) Vai ser preciso agir muito rápido. E sem mandato da sociedade. Vai ter que ser meio na marra(*)

Essa aceleração do tempo reformador que os usurpadores põem em prática me fazem acreditar que a fusão do Ministério da Educação com o MinC não passou de uma estratégia artificial de midiatização, já que nossa comunidade espetacular de ativistas concentrou toda a sua energia onde ela (a energia) talvez não fosse necessária. Enquanto isso, em meio à ocupação de sedes de ministérios e meetings globais e neotropicalistas, já está sacramentada a legislação que vai colocar em prática a recomendação de Gustavo Franco: a dívida pública só se corrige mesmo com a venda de patrimônio da União. "Só [se] conseguirá fazer reduções relevantes na dívida pública se vender patrimônio: concessões, participações, créditos", ou seja, leiloar o país (leia aqui).

A coisa já vai bem adiantada, não se preocupe o Sr. Franco. A jornalista Alessandra Cardoso, do site Outras Palavras, produziu uma interessante (e dramática) matéria sobre as providências que a aceleração reformadora tomou nesses pouco mais de 15 dias de governo ilegal: além da Medida Provisória (MP) 726 que dispôs sobre a reforma ministerial (para a qual se dirigiram as atenções da esfera pública), Temer baixou também, sem alarde nenhum, a MP 727 - que além de retomar o processo de desestatização da era FHC, põe à venda praticamente todo o patrimônio nacional, inclusive a Petrobras (leia a matéria Governo Temer: o plano oculto, de Alessandra Cardoso).

Gustavo Franco, Armínio Fraga, Paulo Skaf, Delfim Netto, Henrique Meirelles, Fernando Henrique, o próprio Temer, essa turma toda não tem qualquer pudor quando advoga a transferência do patrimônio público para as mãos dos interesses privados, uma espécie de neocolonialismo interno e externo contra o qual governos de extração popular ergueram, mesmo precariamente e com sérios equívocos, uma bonita resistência no Brasil e em outros países). 

A questão é saber se esse projeto tem condições de ser implantado e, se implantado, sobrevive com êxito e salva o capitalismo brasileiro. A primeira dúvida: A sociedade topa esse projeto e vai reagir, como já está acontecendo na Petrobras? Ou ele só tem condições de ser implantado se as forças progressistas cairem mais uma vez no canto de sereia da conciliação interclassista e do apaziguamento das contradições entre o capital e o trabalho. Sou cético em relação a isso e estou convencido de que as razões mais profundas do isolamento politico de Dilma, de Lula e do PT, foi essa ingenuidade com que a questão da governabilidade foi transformada em eixo da gestão petista. Na verdade, adulamos o demônio com isso e alimentamos cobras o tempo todo, os bancos, os empresários, o capital internacional... A aliança com o PMDB - que talvez fosse preferível não ter sido feita, mesmo à custa da derrota eleitoral - o melhor que ela nos deu foi Temer, provavelmente o que há de pior na florada do oportunismo político brasileiro. Isso tudo, sem falar nos evangélicos de todas as cores...

No entanto... algumas notícias falam sobre um certo abrandamento na oposição do PT a Temer e sobre o que pode se transformar na pior das armadilhas: tomar como referência o projeto que os golpistas querem impor ao país (leia aqui) ou criar canais de diálogo legitimadores do golpe, como fará a incorrigível CUT se sentar-se à mesa para negociar a reforma da Previdência Social (aqui).

A segunda dúvida é saber se o projeto reformador ultraliberal sobrevive com êxito. Parece difícil, a julgar pelas experiências internacionais no mesmo sentido, experiências condenadas por gente de peso como os economistas Paul Krugman e Joseph Stiglitz. Segundo eles (veja as matérias abaixo), as políticas de austeridade fiscal e de transferência de riqueza para o setor privado, em todos os países onde foram postas em prática, aprofundaram os desequilíbrios econômicos em favor da especulação financeira e da desigualdade social, conjugação explosiva que tornou os países mais instáveis do que antes da crise. 

No caso brasileiro - e esta é a terceira dúvida - quais seriam os efeitos de um agravamento da crise social, caso se confirme essa disposição selvagem com que os programas distributivos têm sido cortados pelos golpistas? A resposta é muito complicada e demanda uma outra postagem, mas para efeito de conclusão, eu diria que essa turma que tomou o poder de assalto deve ignorar a natureza do capitalismo brasileiro, um sistema de baixa acumulação que alimentou um empresariado parasita e dependente das benesses do Estado para sobreviver. Nossa burguesia não capitaliza porque é atrasada e avessa ao risco e só acumula precariamente porque se apossa de um mercado interno numeroso (ainda que de renda concentrada). Mexer nesses dois pêndulos: o da capitalização e o da redução da renda da massa salarial, me parece uma diretriz suicida.

(*) Transcrito de De Boulos a Temer: vai ser na marra. Outras Palavras, 22/05/2016

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